Bikodisse: O que você pensa sobre a criação da Faculdade Steve Biko (FSB)? Como você se vê nesse processo de construção filosófica da (FSB)?
Penso que a criação da Faculdade Steve Biko é uma iniciativa ímpar. Analisando simbolicamente, a criação de uma Faculdade voltada para o atendimento das demandas das populações afrodescendentes, em um país que é o maior em número de negros fora do continente africano e um estado que também se destaca pela predominância do seu contingente negro, sem dúvidas, possui o impacto (iniciativa) política marcante. A criação da Faculdade Biko, somadas ao já consolidado Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (CEAO/UFBA), seria a consolidação de mais um espaço público – dentre os poucos existentes no nosso estado - de difusão de conhecimentos no campo das relações raciais. Penso que a iniciativa de criar uma Faculdade, partindo de uma instituição consolidada como a Steve Biko, forçaria uma centralização dos estudos africanos e da diáspora, ou seja, em uma Faculdade, a História da África e os estudos africanos, seriam o foco central e não uma disciplina “optativa” como acontece em muitas grades curriculares de variadas Faculdades do país. É isso que me refiro à centralização da História da África e dos estudos africanos em um centro de ensino superior. Essa centralização possui uma importância sem precedentes, principalmente, se considerarmos o contexto político das relações raciais no início dos anos 2000. Acredito que uma iniciativa como esta, também é a possibilidade de perceber a maturidade política do movimento social negro. Acredito que essa maturidade política, hoje, ao propor a criação da faculdade, perpassa os alunos que fizeram parte dessa instituição desde sua fundação. É dessa forma que vejo minha inserção nesse processo de construção filosófica da Biko. Como ex-aluno da Biko estou filosoficamente maduro, já que me perguntou em termos filosóficos.
Bikodisse: Nos próximos meses você irá concluir o mestrado no Pós – UFBA (Pós-Afro). Qual sua linha de pesquisa e de que forma pretende dar continuidade aos estudos que desenvolve?
Exatamente. Embora o Programa do qual faço parte seja um Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos, estou mais próximo dos estudos africanos do que da questão étnica, mesmo reconhecendo que é indissociável dos estudos africanos. O foco da minha pesquisa inicial foi à cobertura do Conflito de Darfur pela Folha de São Paulo (1989-2001). Devido alguns problemas metodológicos, após o exame de qualificação, tive que redimensionar toda minha pesquisa e incluir outras temáticas, a exemplo dos editoriais. Agora tenho de esquadrinhá-la para vê qual será o resultado final. Enquanto isso, o trabalho continua!!! Pretendo fazer um doutorado em alguma área que me permita analisar a imagem da África construída no Brasil. Pretendo continuar pesquisando jornais, pois a mídia impressa, de maneira geral, tem uma importância ímpar no que se difunde sobre a África no Brasil. Imagine só, quem vai me convencer de que um jornal como a Folha de São Paulo que, segundo a Associação Nacional de Jornais (ANJ), é o maior em circulação do país, não exerce influência na construção da imagem da África no Brasil? Esse é o jornal mais complexo, por formar a opinião daqueles que monopolizam os recursos do país. A Folha não é jornal “povão”. São as pessoas as quais a Folha forma opinião (a elite) que se apresentam contra as mudanças, por exemplo, do sistema de cotas. Por isso pretendo dar continuidade a esses estudos, - uma vez que – acho estratégico entender como agem as elites do nosso país. Nos editoriais e notícias da pesquisa, parte considerável
das referências feitas ao continente, na Folha é sob a interpretação afropessimista e usando termos como: selvageria, tribo, carnificina, guerra civil, genocídio, dentre tantos outros. Encontrei um editorial da Folha dos anos 30 que exigia a expulsão dos negros da cidade de volta para a roça. Em outro editorial dos anos 90, a Folha condenou o líder negro Nelson Mandela, na ocasião de uma visita ao pais, por declarar que o Brasil era uma democracia a ser seguida e na opinião dos editores da Folha, Mandela jamais poderia ter falado de democracia racial, já que esse comandava um país como a África do Sul. Essa alternância do posicionamento político dos editores da Folha sobre a África que me interessa, seja na Folha, ou na mídia impressa como um todo.
Bikodisse: Você foi estudante de dois projetos da Biko: DHAR e Pré – Vestibular. Conte-nos um pouco sobre essas duas experiências.
Cheguei a Biko em 2000. No momento em que fui aprovado as coisas começaram a se encaixar. Tinha tido alguns problemas no período anterior, então, naquele momento a Steve Biko, meio que estava sendo uma forma de recomeço. Sobre a questão da conscientização racial, a Biko não tinha sido, naquele momento, o lugar do meu primeiro contato com a questão racial, até porque, em casa, já acompanhava de forma desinteressada a experiência militante de minha irmã mais velha (Márcia Paim). Meu pai, Sr Venâncio, tinha um bar em cima da minha casa, vendia mocotó, sarapatel, arraia, etc. Muitos integrantes do Movimento Negro, vários dos quais, só posteriormente vim compreender a importância que possuíam na organização do próprio movimento, frequentavam lá. Acompanhava toda movimentação do sobe e desce de reuniões, até porque, muitas vezes eu que abria o portão, pois até que o restante do pessoal chegasse, minha irmã se arrumasse coisa e tal, abria o portão para que os que chegavam aguardassem no bar. Muitas reuniões do movimento (de confraternização, inclusive) tiveram lugar no mocotó de Sr. Venâncio. Talvez muitos militantes antigos não se lembrem disso, pois, o tempo é o juiz mais implacável para a memória humana, porém, fui reconhecido por outros mais próximos com quem tenho contato até hoje e acompanharam meu crescimento. É desse período, acho, os primeiros contatos com a questão racial. Nessa época também, é importante lembrar, acompanhava isso só de longe, não estava sabendo do que se passava, via as reuniões e tal, mas completamente voando, “uma merda n’água”, para o lado que o vento soprasse, eu ia! E na verdade estava indo! Nessa época tinha outra cabeça, outras coisas despertavam minha atenção, estava envolvido com outros pensamentos!
Se minha memória não falha, isso que acabei de narrar, acontecia entre o final da década de oitenta a início dos anos 90. Em 2000, depois de um processo atribulado por qual tinha passado, fiz minha inscrição no pré-vestibular da Biko, após muita insistência da irmã que mencionei. Naquele momento, procurava sentido para algumas coisas, por isso era questão de recomeço! As aulas de Cidadania e Consciência Negra (CCN) para mim foram muito importantes, pois precisava me agarrar a algo para reorientar minha vida. Foi aí que passei a compreender do que se tratava a questão racial. Foi aí que compreendi o sentido das reuniões que aconteciam no mocotó de Sr. Venâncio. Foi naquele momento que disse: isso sou eu! Desde então, não consegui mais me separar da história da África.
Bikodisse: As aulas de CCN contribuíram para a sua formação política e cidadã. De que forma?
Tinha uma ideia muito dispersa dessa coisa de ser negro, racismo, preconceito, história da África. Isso em minha cabeça era muito solto! Foi nas aulas de CCN na Biko – embora morasse com uma militante do Movimento Negro, minha irmã - que comecei a amarrar e fazer a relação entre todas essas ideias, logo, é impossível não reconhecer a contribuição que as aulas de CCN e a Steve Biko deram a formação política que possuo hoje.
Foi a partir daí que comecei a ter acesso às referências africanas e da diáspora, Malcolm-X, N’kruma, Garvey, Luther King, Steve Biko, Mandela, Ahmed Sekou Turê, Agostinho Neto e outros. Decidi que enquanto tivesse ar nos pulmões, conheceria o que fosse possível e o que estivesse ao meu alcance sobre a história da África. Foi nesse momento que a história da África passou a ser indissociável de mim. Fiz o pré-vestibular e no Final do ano 2000, fui aprovado no curso de história da Universidade Católica do Salvador (UCSAL), onde iniciei no ano seguinte. Em 2003, retornei a Biko como professor do curso pré-vestibular intensivo, lecionando história do Brasil. Aqui, mais uma vez, a Biko teve um papel importante. Antes de 2003, nunca tinha tido nenhuma experiência de falar em público, tarefa comum para quem se dedica ao ensino da história. A minha primeira experiência (2002) foi para um grupo de alunos e ex-alunos da Steve Biko, o Grupo GERAR. Foi a primeira vez que falei em público. Nervosismo à flor da pele! O pessoal me deu o maior apoio! Aquele grupo foi minha primeira sala de aula! Talvez eles não tenham dimensão do quanto àquela experiência teve impacto na minha vida. Ali comecei a quebrar o tabu! Depois disso, tive uma professora (negra) na Universidade que lecionava as disciplinas história Medieval I e II. Lembro que fiz parte de uma equipe que tinha de apresentar um livro intitulado: O diabo no imaginário cristão. Este livro falava da personificação do diabo no ocidente.
Lembro que durante a avaliação da equipe, após a apresentação do trabalho, ela falou para uma sala de 60 pessoas aproximadamente, que o único componente da equipe que não tinha sido capaz de passar o conteúdo do livro tinha sido eu! Detalhe: o único negro da equipe era eu! Você tem idéia do impacto que isso causou em mim? Ouvir de uma professora negra - diga-se de passagem, uma das poucas na Universidade a ocupar a cadeira de história medieval - que você, o único negro da equipe, NÃO FOI CAPAZ de apresentar o conteúdo dado, ou seja, a elite foi melhor do que a escória! Aquilo mexeu comigo de um jeito, que no semestre seguinte, isto é, na disciplina de história Medieval II, apresentei outro trabalho em que a mesma professora retirou em público todas as palavras que tinha dito no semestre anterior em Medieval I. A raiva que tinha dela no momento da apresentação foi tão grande que esqueci da turma e só conseguia ouvir a voz dela dizendo: VOCÊ NÃO FOI CAPAZ! No final, apresentei o melhor trabalho e superei o público. A partir daí, nunca mais tive problemas em falar em público. Detalhe: depois a professora me chamou no canto e me disse o seguinte: Eu sempre soube que você podia dar mais. Ela me desarmou completamente! Eu estava chateado com ela, pois, quando se diz que uma pessoa não FOI CAPAZ, como ela havia dito, não causava espanto a minha atitude. Percebi depois, que ela procurou me atingir de uma forma que eu pudesse explorar o máximo do meu potencial! Sou muito grato à professora por ter me provocado daquele jeito. Talvez se isso não tivesse acontecido, hoje acho que ainda teria dificuldades de falar em público. O grupo de estudos na Biko e a experiência em sala na universidade me deram tranquilidade suficiente para que eu pudesse lecionar história do Brasil no curso intensivo pré-vestibular em 2003. Foi uma experiência impar, gratificante e inesquecível. Lembro também que na época do pré-vestibular nos Galés, o curso era em frente ao hospital do exército. Eram duas salas cedidas pela escola e de vez em quando o “pau quebrava” por que tinha que juntar as turmas que eram grandes e as salas pouco ventiladas. Então era o maior “furduncio”, mas no final, todos se ajeitavam e ninguém ficava sem aula. Foi um período muito bom, muitas das amizades que guardo até hoje foram feitas ali, ou a partir dali a exemplo de Rosana, Kênia, Michel e Alan Jones, Luiz Henrique Anderson (Dão), Andréia (Itinga), Indira, Marilene, Leonardo (Léo), Vânia (professora de dança), Israel Vibration, Kátia (katinha a organizadora do curso), e pessoas admiráveis. Às vezes penso que aquela foi uma das melhores turmas que a Biko teve, pois, discordava-se de tudo e ao mesmo tempo concordava-se com tudo. Não tenho notícias de nenhuma inimizade ou mágoa daquela turma. Por outro lado, tínhamos uma excelente equipe de professores. Todos foram muito atenciosos comigo, especialmente o professor Lourival, que inúmeras vezes ficou comigo tirando dúvidas até quase 23 horas quando o curso terminava entre 21:30 e 22:00 hrs. Foi a pessoa com quem aprendi orações subordinadas, assunto de português que tinha sido um dos mais difíceis para mim. Nunca tive oportunidade de agradecer a essas pessoas, e faço isso aqui nessas linhas, obrigado a todos!
Bikodisse: Quais os principais fatores que contribuíram na escolha pelo curso de historia?
Acho que no momento em que percebi a dimensão da herança histórica, cronológica e cultural da qual faço parte, decidi fazer história. Vi neste curso a possibilidade do autoconhecimento, pois, aprofundar os conhecimentos sobre a história da África, é perceber a si mesmo, como o produto contemporâneo de um processo histórico iniciado a sete milhões de anos, quando o continente africano passou a ser o cenário do aparecimento da nossa espécie. O impacto dessas descobertas, não dá pra ter dimensão, quando se trata de construção identitária. Tem uma frase de Malcolm-X que gosto muito, e que talvez expresse implicitamente a importância de ter escolhido o curso de história:
“Novas pontes devem ser construídas, porque na mente da maioria do nosso povo, hoje a África é longe demais. Então o único modo de nós levarmos nessa direção, é construindo novas pontes. Nós precisamos entender a África e precisamos entender nosso povo aqui, para construir uma ponte, um contato, uma linha de comunicação entre os dois. E quando essas linhas forem estabelecidas, e nossos irmãos africanos puderem esticar as mãos e nos alcançar e quando nós pudermos alcançá-los, não haverá nada que esse homem de olho azul possa nos fazer, com sucesso, desse dia em diante.” Penso que a história tem um papel fundamental na construção das pontes que Malcolm-X se referia, pois, a história edifica consciências. Acho que esse foi outro motivo que me levou a escolher esse curso, descobrir a importância que a história exerce na construção da consciência dos indivíduos.
Bikodisse: Enfrentou alguma dificuldade para cursar historia na Universidade Católica?
A forma como coloca a pergunta deixa espaço aberto para pensar que haja algum tipo de facilidade para as populações de cor cursarem o ensino superior no Brasil, independente de ser a UCSAL, na Bahia, no Maranhão ou em qualquer outro lugar. Penso que as dificuldades tornam comum as experiências negras. É difícil – e com isso não quero dizer que nunca tenha existido – encontrar afrodescendentes que puderam ter acesso ao ensino superior sem ter encontrado qualquer tipo de dificuldade. Acho que alguns encontram mais, outros menos, porém todos têm suas dificuldades. Eu, particularmente, dei a sorte de ser contemplado – no último ano da vigência do programa de bolsas da Universidade o CREDUCSAL em 2001 – com uma bolsa do 85% do valor da mensalidade. Por outro lado, tenho consciência que outros não tiveram e não têm essa sorte. Além disso existiam outras dificuldades que se apresentavam para vários colegas meus e que pra mim eram mais suaves, eram as despesas do transporte, pois sempre morei perto da universidade. As xerox não devem ser esquecidas, concorda! Essas adversidades, quando tomadas em conjunto, tornam-se um sério obstáculo a permanência dos mesmos. A evasão desses estudantes é o problema que temos acompanhado ao longo dos anos! No que diz respeito ao fato de ter enfrentado dificuldades no curso, como colocou a frase de, Malcolm-X, ilustra de maneira contundente a nossa situação em relação a essa questão, logo: “(...). Parem de falar do Sul. A partir do Sul da fronteira canadense, vocês estão no sul”. Em outras palavras, e baseado na nossa realidade, seria uma forma de dizer: estamos todos no mesmo barco e enfrentamos as mesmas dificuldades. Portanto as dificuldades nos unem mais do que nos separam.
Bikodisse: Como foi pra você ministrar aulas de historia no curso Pré – Vestibular na Steve Biko?
Depois de ter quebrado o tabu de falar em público, foi muito interessante, uma experiência ímpar. Acho que essa coisa de mostrar as pessoas o papel que a história ocupa na formação política dos indivíduos é importantíssima. Com as aulas na Biko pude perceber isso de perto.
Bikodisse: Qual sua opinião sobre a Lei 10.639/03 e que tipo de avaliação pode fazer sobre sua implementação.
É preciso colocar alguns pontos nessa questão. Tem-se feito uma discussão muito distorcida sobre a implementação dos Estudos Africanos no Brasil. Ao contrário do que muitos pensam a lei 10.639/03, não torna os cursos de história da África inéditos.
Os cursos de História da África já existiam em algumas universidades do país desde os anos 70 do século passado. É preciso destacar que estes cursos surgem marginalizados devido ao seu campo representar o interesse de uma minoria de pesquisadores. Além disso, se considerarmos o contexto político racial do país nesse período, há de convir a impossibilidade da História da África ter visibilidade como estamos atualmente presenciando. A lei 10.639/03 insere um novo ânimo aos estudos africanos no Brasil, só que dessa vez, isso foi feito após a comunidade internacional reconhecer, na conferência de Durban, que a temática do racismo não poderia mais ser tratada como assunto transversal, e sim central. Nesse sentido a implementação da lei abriu uma porta que não pode mais ser fechada, pois a mentalidade das pessoas em relação a esse tema, embora seja bastante conservadora, não é a mesma dos anos 70. Será muito difícil daqui pra frente qualquer governo – municipal, estadual, federal – ser contemplado com uma plataforma em que a temática racial não esteja presente.
Esse é um dos aspectos positivos da lei. Por outro lado, o fato de nunca ter se dedicado ao continente africano nos currículos escolares gerou uma desinformação tão grande, agora, no momento de se estabelecer um ponto de partida não temos! Partiremos de onde, se nunca tivemos informações coerentes sobre a África no Brasil? Quais serão as referências que utilizaremos para as leituras, se nunca conhecemos os autores africanos? Esses são alguns dos pontos negativos da lei. Por outro lado temos de nos preocupar em saber que são os responsáveis por difundir e formar os conhecimentos da África no Brasil, isso é muito importante! Há muita confusão nesse sentido. Uma coisa é você discutir a história do negro no Brasil, outra, é discutir a história da África, embora ambas estejam interligadas. Tem muitas pessoas que se acham especialistas em história da África, por que falam da história do negro no Brasil e fazem referência as regiões na África de onde vieram os escravizados – Gana, Angola, Nigéria -, essas pessoas se consideram especialistas em África. Tive um colega que me deixou bestificado ao relatar sua participação em uma especialização em história da África. Segundo ele, no curso se ensinavam que Robert Mugabe (atual presidente de Zimbábue) era o presidente de Angola e que, nesse mesmo país, falava-se o francês, imagine! Esse é o perigo da existência de tantos “especialistas” em história da África. Falar das regiões de onde vieram os negros que formaram a mão de obra escrava é completamente diferente, por exemplo, de se verificar os impactos do califado de Sokoto nas relações sociais da Nigéria, percebe? Outro exemplo, averiguar o espaço ocupado pela seita murida durante a expansão francesa no Senegal. Tem outra questão, a história da África, termina ficando restrita à área das ciências humanas – história, antropologia, sociologia, etnologia. Não se fala da História da África nas áreas da genética, biologia molecular, antropobiologia, ou seja, na área das ciências biomédicas. Este campo de estudos é considerado o que é de mais desenvolvido em termos de metodologia de pesquisa. Explicando melhor, a história da África está no centro das pesquisas paleontológicas. A paleontologia, suplementada pela biologia molecular e antropobiologia, tem contribuído significativamente para organização cronológica e um melhor entendimento sobre a evolução humana no continente africano. Sabemos que a arqueologia que é a ciência que se preocupa em achar os fósseis hominídeos tem grandes dificuldades em achar esses fósseis, já que, não são todos os dias que os investigadores encontram restos da humanidade moderna. A partir da recuperação de fragmentos dotados de DNA, está sendo possível confrontar esses dados com datações aproximadas dos antigos fósseis encontrados e produzir um quadro evolutivo coerente. Imagine se fôssemos esperar a arqueologia revelar esses fósseis, quantos anos levariam para possuirmos uma noção do que foi a humanidade? Aqui entre a biologia molecular! Esta auxilia a partir dos indícios de DNA encontrados uma datação praticamente irrefutável. Por esse motivo a história da África tem de ser introduzida nos campos mais avançados. Para as gerações depois da minha, não os incentivo a fazer história, geografia, antropologia, etnologia, sociologia, pois, penso que já tem pessoas muito competentes nessas áreas. Devemos incentivá-los a fazer biologia molecular, antropobiologia, engenharia genética, nanotecnologia, ou seja, nos campos mais avançados da formação do conhecimento. Suponhamos que hoje, surja uma hipótese fundamentada na biologia molecular de que a Ásia foi o berço da humanidade e não a África. Quem seriam os pesquisadores afrodescendentes no campo de estudo das ciências biomédicas preparados para refutá-las? Acho a lei 10.639/03 positiva e produtiva, por abrir caminho para uma profunda mudança epistemológica dos estudos da África no Brasil.
Bikodisse: O estado do Rio de Janeiro pretende adotar reserva de vagas para negros em concursos públicos. Qual sua opinião sobre essa medida?
Se essa reserva for adotada, terá um impacto importantíssimo, pois, significará a extensão da política de cotas do âmbito da educação para o funcionalismo público. Nesse sentido, as cotas deixam de ser pontuais para ser uma política macro. Essas ações, se implementadas, seriam indícios fortíssimos do início de mudanças no campo das relações raciais brasileiras.
Bikodisse: Você pode deixar algumas dicas de livros, site e vídeos para as pessoas que querem iniciar um estudo sobre a “História da África”?
Acho que todos aqueles que desejam iniciar os estudos na história da África devem em primeiro lugar, conhecer os pensadores africanos e da diáspora. Quem foram essas pessoas, onde nasceram quais os seus escritos mais importantes, qual sua principal contribuição na luta contra o racismo. É importante, nesse sentido, destacar o principal obstáculo enfrentado pela população afrodescendente em Salvador para conhecer os referenciais da África e da diáspora, a língua! Parte do material que fornece um conhecimento coerente dessas pessoas, está ou em inglês ou francês. Esses idiomas quando considerados no conjunto de uma população em mais de 100 milhões de pessoas vivem na chamada “linha da pobreza”, torna-se um problema agravante. Nesse sentido, penso, que para conhecer essas referências as pessoas devem procurar um livro chamado almas da gente negra de Edward Du. Bois. Neste livro acompanharemos a percepção racial nos Estados Unidos daquele que foi um dos maiores pensadores do pan-africanismo no século XX. Outro livro que devemos ter em nossa cabeceira é a autobiografia de Malcom-X. Neste livro poderemos acompanhar, a parti da experiência do líder negro americano, o drama que atormenta milhares de famílias negras nas mais diversas partes do globo: a criminalidade. Negra Raízes de Alex Harley, não deve ficar de fora, pois, esse livro nos mostra a importância do conhecimento do passado da África para a formação da nossa identidade. Jacobinos negros de C.L.R.James é outro livro que, todos aqueles que enveredarem para os estudos da África e da diáspora devem conhecer. Este livro é o que há de mais fundamentado sobre a história da revolução de Haiti. Essa revolução todos devem conhecer. Amada e Jazz de Toni Morrison devem ser lidos como os clássicos que relatam o drama da escravidão nos Estados Unidos.
O longo caminho para Liberdade, a autobiografia de Nelson Mandela, é puro conhecimento sobre a história de Mandela, da África do Sul e do apartheid neste país. Quem ler não vai se arrepender! Tem um artigo do professor Carlos Moore em um livro intitulado: educação anti-racista: caminhos abertos pela lei federal 10.639/03 lançado pela secretária de educação continuada (SECAD). Pra aqueles que nunca viram a história da África o conteúdo deste artigo apresenta-se como manual indispensável. O site da casa das África é uma boa fonte de informação para os estudos africanos, ali encontrarão além de bons artigos, muitas referências clássicas. No que diz respeito a vídeos, achei interessante o filme que fala da contribuição negra na criação do Rock, Cadilac Record. Recomendo o Diário de uma louca, para quem gosta de chorar! O filme Sankofa, para quem puder assistir, deixa claro a importância do passado africano no nosso presente.
Grande Márcio. Parabéns pela trajetória e pela entrevista motivadora! Forte abraço.
ResponderExcluirGrande Marcio,
ResponderExcluirBelíssima e motivante trajetória contada aqui no BikoDisse. Minha admiração pela sua determinação, capacidade de formulação e compromisso com nossa comunidade.
Parabéns, muita energia positiva na sua vida e um grande abraço do seu irmão.
Michel