Bikodisse: Conte-nos um pouco sobre sua trajetória antes do ingresso no Consorcio da Juventude.
João Paulo: Antes de participar do Consórcio da Juventude minha trajetória foi um processo consecutivo de boas iniciativas promovidas por organizações sociais públicas e privadas que me proporcionaram aprendizados que despertaram em mim uma maturidade e uma consciência de direito, levando-me a aproveitar todas as oportunidades que a vida me deu, especialmente as de acesso ao conhecimento.
Estes aprendizados adquiridos em outras organizações permitiram-me chegar ao Instituto com clareza do que queria. Eu sabia mais ou menos o que precisava fazer para alcançar as minhas humildes metas, que eram concluir o ensino médio e conseguir um emprego de carteira assinada para ajudar em casa, mas naquela época eu tinha uma frágil “identidade racial”.
Ao longo do processo do Consórcio, no qual era aluno do Curso de Mobilizador Social, fui levado pelos educadores, por meio de debates muito acalorados -o que é padrão para atividades formativas da Biko e outras atividades educativas-, a questionar minha identidade racial, que até então era de mestiço, e superar o processo de autossabotagem que o racismo havia incutido em mim, ao longo da minha vida.
A vivência junto a Biko me deixou como legado a autoconfiança e a segurança para alçar novos voos e ter a plena certeza de concretizá-los, pois a Biko através do Consórcio possibilitou-me a proximidade com pessoas como Cosme, Vilma Reis, Valdo Lumunda, Samuel Vida, Valdecir Nascimento, Hamilton Borges, que com os seus exemplos e histórias de vida mostraram-me que era possível chegar onde eles haviam chegado, e fazer como eles; tirar a população negra da condição de exceção para torná-la regra. Foi também graças a essas influências que me transformei num jovem negro compromissado com a superação do machismo, do racismo e da homofobia
Bikodisse: Antes de ingressar no Instituto Steve Biko você já havia participado de outro grupo ou ONG? Quais? De que forma?
João Paulo: Tive a oportunidade de fazer parte do CRIA (Centro de Referência Integral para Adolescentes), inicialmente como jovem ator e depois como monitor. Fui Conselheiro do MIAC (Movimento de Intercambio Artístico Cultural Pela Cidadania) pela Fundação Cidade Mãe - Empresa Educativa de Roma, a primeira organização em que fui “atendido”, sendo a mesma uma das mais significativas em minha história, por dar-me condições de transpor o muro visível que circundava minha comunidade e me apresentar o mundo. Sei que para alguns, isso podo parecer besteira, mas informo que ainda existem jovens que sequer saem das fronteiras de sua comunidade e que não têm condições de conhecer a cidade em que vivem.
Aproveito para externar minha preocupação com esta OSP (Organização Social Pública) Fundação Cidade Mãe, que na atual gestão da prefeitura de Salvador, encontra-se com suas unidades socioeducativas sucateadas, o que a meu ver, é um grande prejuízo para as crianças e adolescentes moradores dessas comunidades, especialmente para a comunidade na qual resido que é Itapagipe.
Bikodisse: Como foi seu relacionamento com a Biko durante esse tempo? O que faz
atualmente no ICSB?
João Paulo: Depois de terminar o Consórcio Social da Juventude, e por ter conseguido um estágio na época na Caixa Econômica Federal e estar no ano final de conclusão do ensino médio, passei a ficar com pouco tempo, assim participava de uma atividade ou outra promovida pelo Instituto.
Em 2007, se não me falha a memória, fui representante do GRUCON-BA (Grupo de União e Consciência Negra) na Subcomissão de Juventude e Reflexão a Violência da CAMMPI (Comissão de Articulação dos Moradores da Península de Itapagipe), a qual realizava um curso de formação política em parceira com ISPAC, tendo como uma das facilitadoras Nádia, que coordenava na época o núcleo de antirracismo e direitos humanos da Biko. Ela então fez um convite a mim e a outro irmão de militância chamado Ismael, para nos incorporamos ao núcleo, foi quando voltei para a Biko.
Dentro do Núcleo de Antirracismo e Direitos humanos, por meio de um projeto de mapeamento das violações de direitos, em especial aqueles referentes aos fatores raciais e de gênero, apoiado na época pelo Fundo Brasil de Direitos, tive a experiência de levar a discussão sobre DH do centro para as comunidades periféricas de Salvador, fazendo um diálogo com estas comunidades, que objetivava, além de informar, empoderar as mesmas sobre como ter acesso ao sistema nacional e internacional de direitos humanos, e como estas comunidades poderiam usar os mesmos para denunciar as violações de direito que estavam sofrendo. Um dos grandes baratos desta experiência é que a BIKO apresenta para a cidade uma nova forma de discutir direitos humanos associado ao antirracismo, tendo os jovens neste processo não mais como beneficiários, mas como sujeitos, executores, sem falsa modéstia, bons executores.
Não muito tempo depois o Instituto Steve Biko, recebeu o convite, por meio da coordenadora do Núcleo de Antirracismo e DH, Nádia, de ficar responsável pelo desenvolvimento da metodologia e execução do processo educativo do PROGREDH, quando mais uma vez a Biko aposta na juventude, colocando na mão da mesma o importante papel de formar 500 jovens oriundos de inúmeras escolas municipais de Salvador, além de fazer com que estes jovens desenvolvessem ações ligadas aos direitos humanos, antirracismo e equidade dentro das escolas.
Estas duas experiências dentro do instituto fortaleceram meus laços com as organizações e firmaram em mim o compromisso de, cada vez mais, contribuir para que essas ações se propaguem.
Bikodisse: Em outras edições da Bikodisse, @s entrevistad@s relataram a importância da disciplina CCN (Cidadania e Consciência Negra) em suas vidas. Com eram as aulas de CCN na época que você estudou no Consorcio da Juventude? Que importância essas aulas tiveram na elevação de sua autoestima e formação política?
João Paulo: Pergunta muito interessante, primeiro porque permite-me fazer alguns esclarecimentos sobre o CCN dentro do Consórcio.
Dentro do Consórcio não tive a disciplina CCN, mas sim outra chamada Equidade, que tem alguns conteúdos muito parecidos com CCN. No entanto, a matéria equidade vai muito mais além, o que, para mim, foi uma grande sacada das organizações envolvidas na execução das primeira turma do Consórcio em Salvador, por esta ter colocado na pauta da formação de jovens para o primeiro emprego, a necessidade de preparar os mesmos para o respeito às diversidades. Acredito que esta iniciativa poderia contribuir muito para a redução do preconceito e discriminação.
Destaco também neste processo de consórcio o importante papel que a Biko teve, pelo que lembro, enquanto única organização membro do 1º Consorcio ligada ao movimento negro, para incluir na grade da disciplina de Equidade às questões raciais.
Ah, quase ia terminar de responder esta pergunta sem diferenciar as disciplinas de CCN e Equidade. Então, CCN trabalha as questões raciais e de gênero, e Equidade trabalha as questões raciais e de gênero, além de acessibilidade.
Bikodisse: Quais os principais motivos para a escolha do seu curso de graduação? O que motivou o seu interesse em ingressar na Universidade?
João Paulo: Hoje sou estudante do curso de Pedagogia (6º semestre – EAD) o qual sempre admirei, mas mesmo dentro da universidade ainda sinto-me academicamente incompleto, por estar no movimento social e necessitar de algumas ferramentas que o curso de Pedagogia não ofertava. Por isso, em 2009 matriculei-me no curso de Serviço Social para suprir esta necessidade.
Bikodisse: O Instituto Steve Biko tem a visão de constituir-se numa Instituição de Ensino Superior (IES) em 2012. Como você se vê nesse processo?
João Paulo: Vejo-me, assim como outr@s bikud@s, como colaborador deste processo. Hoje temos muito a comemorar, pois já conseguimos o espaço tão almejo para a implantação da IES.
Bikodisse: Como se dá sua contribuição para movimento de economia solidária? Você acredita que a economia solidária sofreu/sofre alguma(s) influência (s) das religiões de matriz africana? De que forma?
João Paulo: A contribuição que venho dando à economia solidária é fazer com que ela não fique sendo pautada entre os mesmo, e que outros movimentos e organizações a tenham como uma das suas estratégias, por ela não ser fim, mas sim meio para viabilizar as conquistas.
Um dos desafios hoje, no papel novo que estou ocupando enquanto coordenador executivo do Coletivo Para Promoção de Práticas Solidárias Casa de Taipa, ONG de assessoria, consultoria e formação fundada por um grupo de jovens ex-bikudos e membros de empreendimentos de Economia Solidária, é fazer com que a comunidade negra consiga não ter só o empreendedorismo, mas também a Ecosol como caminho. Embora não tenha nada contra ao empreendedorismo, percebo que o mesmo só nos coloca no círculo do capitalismo, do individualismo, da exploração, que a meu ver vem minando um número significativo de iniciativas de geração de trabalho e renda da comunidade negra.
Sobre a pergunta de que a Ecosol sofre influência das práticas cooperativas das religiões de matriz africana; sem sombra de dúvidas, e de outras como as irmandades negras que mobilizavam dinheiro para comprar a liberdade de outros escravizados, os quilombos enquanto experiências de autogestão do trabalho em cooperativas, mais para frente temos as experiência dos nossos irmãos negros americanos, com o movimento Black Power que fomentava dentro da comunidade negra, a prática de uma coisa que a economia solidária chamava de consumo consciente, só se comprava em estabelecimentos que fortalecessem a causa da superação do racismo. Esta iniciativa permitiu a circulação do dinheiro dentro da comunidade, fortalecendo com isso a economia local, o que é um dos princípios que a Ecosol prega.
Bikodisse: Fale-nos um pouco sobre a sua participação na elaboração e implementação do Projeto SOS Sustentabilidade.
João Paulo: Para falar sobre minha participação na elaboração e implementação do Projeto SOS Sustentabilidade acredito que é necessário primeiro falar o que é o mesmo. O SOS Sustentabilidade é um projeto de incubação de empreendimentos solidários das comunidades do Tororó em Base Naval e Santana em Ilha de Maré, ligados a cadeia de pesca e do artesanato do bordado de bilro, fruto da cooperação técnica do Coletivo Para Promoção de Práticas Solidárias Casa de Taipa, Espaço Quilombo e o Instituto Steve Biko.
Dentro desta Cooperação técnica ficou a cargo da Casa de Taipa, no processo de elaboração do desenho da metodologia de incubação que seria aplicada no projeto, o desenvolvimento desta metodologia. Agora, no processo de implementação sou Gerente de Incubação da mesma, estando sobre a responsabilidade da Biko a gestão financeira e administrativa do projeto, além das construções estratégias e pedagógicas para fortalecimento e resgate da história das comunidades quilombolas urbanas. Cabe ao Espaço Quilombo a responsabilidade do processo de monitoramento ambiental e assistência aos empreendimentos da cadeia de pesca e mobilização comunitária.
De acordo com o aprendizado acumulado nestes quatro meses de execução da incubadora SOS Sustentabilidade, acredito que ao final do projeto vamos deixar um bom legado de experiências para que outras entidades ligadas ao movimento negro possam tomá-lo como referência nas suas ações de geração de trabalho e renda.
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