quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Bikodisse Entrevista: Daniel Nascimento e Leonardo Vieira


BIKO DISSE: "A Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação – a negritude de sua pele – e de agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que os prendem em uma servidão perpétua."



Bikodisse: Conte-nos um pouco como foi o processo de seleção para a Morehouse.


Daniel Nascimento: Os docentes de Sociologia, Drª Ida Mukenge e Dr. T. L. Mukenge, da Morehouse College, com a missão de recrutar estudantes negros estrangeiros, para estudar nos Estados Unidos, criaram uma parceria com o Instituto Cultural Steve Biko, através do Diretor executivo Sílvio Humberto. Os candidatos a ocupar essas vagas e receber a bolsa integral de estudos, foram selecionados de acordo com os seus desempenhos em sala de aula e com o compromisso de cada um perante a comunidade negra de Salvador. Fui aluno do projeto Oguntec. Leonardo Vieria participou do pré-vestibular intensivo da Biko e Rogério Caldas fazia parte da turma integral do pré-vestibular. Cada um fazia parte de um projeto diferente.



Leonardo Vieira: O processo de seleção foi feito por diretores e professores do Instituto Steve Biko, que nos avaliaram de acordo com o nosso desempenho nos estudos e compromisso com a instituição. O interessante desse processo é que nós não conhecíamos o idioma inglês. No entanto, Dr. Sílvio Humberto acreditou em nós, em nossos esforços e na possibilidade de que essa oportunidade abriria portas para muitos outros estudantes da Biko.



Bikodisse: Qual a importância da Biko em sua vida pessoal e acadêmica?


Daniel Nascimento: A Biko teve uma importância fundamental em minha vida pessoal e em meu desenvolvimento nos estudos. Além disso, foi através do Instituto que pude conhecer os valores da cultura africana. Com a disciplina CCN – Cidadania e Conciência Negra, pude desenvolver o meu senso crítico, o que me ajuda até hoje na vivência numa instituição negra dos Estados Unidos.



Leonardo Vieira: O instituto Steve Biko foi e é muito importante em minha vida pois, através dele, pude aprender mais sobre mim mesmo e me afirmar como Homem Negro. Antes da Biko, não conhecia os meus ancestrais, estava vivendo sem ter consciência dos problemas raciais ao meu redor. O Instituto não apenas ajudou na formação de minha consciência e afirmação, mas também na minha intelectualidade, já que lá me ajudaram a ver que eu poderia e deveria ingressar na universidade, que eu tinha que retomar o que foi tirado da comunidade negra brasileira. Como estudante egresso do pré-vestibular, a minha vida acadêmica melhorou muito, me senti mais preparado para enfrentar os vestibulares.


Bikodisse: Que curso de graduação você escolheu? O que o influenciou nessa escolha?


Daniel Nascimento: Terminei, agora em 2010, o curso de Ciências Gerais aqui na Morehouse College, que é requerimento para o ingresso numa Universidade de Engenharia (as que têm parceria com a Morehouse), através de um programa em que obtemos dois diplomas em 5 ou 6 anos.

A vontade de estudar na área de ciência e tecnologia surgiu a partir de meu desempenho em Matemática, Física e Química no Ensino Médio. No entanto, optei por fazer um curso na área de exatas: Engenharia Elétrica. Os professores do projeto Oguntec tiveram uma participação fundamental nessa escolha.



Leonardo Vieira: Eu quis em cursar História, porque tinha muita vontade de aprender mais sobre a história da população negra, até pensava em escrever um livro sobre @s negr@s. No entanto, quando completei a minha inscrição para a Morehouse, tinha marcado Psicologia. Então, percebi que tinha vontade de explorar a área da saúde mental e a escravidão psicológica.
Me formei em Sociologia com ênfase em Saúde Pública. A escolha do meu curso foi influenciada pelos problemas sociais impostos à população negra. Como sociólogo, pretendo incorporar a história e a psicologia em prol de melhorias para a comunidade negra, através da implementação de programas sociais que sejam voltados à inclusão de negros e negras nas áreas de liderança.



Bikodisse: De que forma você pretende contribuir para a redução das desigualdades sociorraciais do Brasil?


Daniel Nascimento: O meu objetivo é me preparar para o ensino na área de ciência e tecnologia. Pretendo ser docente de Universidades e Organizações não governamentais, brasileiras. Também desejo, através do Instituto Cultural Steve Biko, proporcionar a jovens negros e negras o mesmo sucesso que tive. O meu compromisso é desenvolver projetos sociais focados na educação para os jovens da comunidade negra, no intuito de despertar suas criatividades e talentos, conduzindo-os às Universidades e Faculdades.


Leonardo Vieira: Como disse anteriormente, pretendo me dedicar a programas sociais que busquem a inclusão de negr@s em áreas de liderança, em posições em que nós possamos ser contribuidores ativos, e não apenas coadjuvantes. Também planejo, através do meu conhecimento acadêmico e de meu domínio da língua inglesa, estreitar as relações internacionais, buscando, em outros países, o patrocínio para os programas da comunidade negra brasileira.


Bikodisse: Que conselho você dá para os três bikudos que irão para a Morehouse em Junho de 2011?

Daniel Nascimento: Os futuros estudantes bikudos na Morehouse devem ter em mente que o sistema educacional norte-americano é muito rigoroso, o oposto do que vivemos no Brasil. Vocês devem estudar para aprender independentemente das disciplinas, se dedicar sem limites, porque o estudo é uma “odisséia”. Perseverança e força de vontade são imprescindíveis, além da consciência de que a sua integridade e o bom desempenho, farão com que outros jovens tenham a mesma oportunidade. O seu sucesso na faculdade representa o sucesso da comunidade negra brasileira, o sucesso do Instituto Steve Biko.

Leonardo Vieira: Muita garra e determinação, pois o que é de vocês, ninguém pode tirar. Vocês terão que dar o máximo de si. Aproveitem bastante as oportunidades que vierem em seus caminhos, e estudem, estudem muito. Sei que a pressão neste momento é muito grande, mas não se preocupem, porque ela é passageira.

Comente um pouco a sua adaptação com a cultura estadunidense.

Daniel Nascimento: A vida de estudante numa Instituição fora do Brasil é muito diferente. Demorou um pouco para que eu me adaptasse, o calendário norte-americano não tem muitos feriados nem paralisação do sistema educacional, como estamos acostumados a ver no Brasil. Aqui as escolas só param de funcionar quando acontece alguma catástrofe natural, como os tornados e a neve intensa.

Durante esse tempo, aqui na Morehouse, já virei noites estudando em grupo, e aqui isso é normal, independentemente do curso. Geralmente, temos muito estudo e pouca diversão. No entanto, adaptei-me muito bem a essa nova rotina estudantil e com a cultura do país. Em um semestre, já conseguia me sentir bem.


Leonardo Vieira: Na verdade, ainda não me adaptei à cultura daqui. Infelizmente, os norte-americanos são muito individualistas. Falo apenas da área que pude conhecer do país, a cidade de Atlanta em Georgia, onde aprendi a lidar com as diferenças culturais. Uma das coisas muito aplicadas pelas pessoas aqui é o espaço pessoal (personal space), ou seja, todos devem ficar a mais ou menos um metro de distância uns dos outros. Essa foi uma das adaptações mais complicadas para mim, pois no Brasil não temos essa preocupação em estar próximos das pessoas. O senso de comunidade por aqui ainda está corrompido por causa da individualidade de algumas pessoas.



A Morehouse pode servir como exemplo para a criação da Faculdade Steve Biko? De que forma?

Daniel Nascimento: Acredito que a experiência adquirida aqui na Morehouse College poderá ser útil para a Faculdade Steve Biko, em Salvador. As instituições não governamentais devem buscar parcerias, realizar projetos sociais e angariar recursos para construir a Faculdade Biko. Também acredito que seja válido que estudantes da Faculdade Biko possam realizar serviços voluntários nas comunidades e escolas públicas, representando a Instituição, inclusive nos meios de comunicação. Penso que, para a concretização do sonho da Faculdade Biko, seja necessário que Ongs e ativistas do movimento negro juntem forças e estabeleçam contato com grandes empresas nacionais e internacionais. Mas, antes de mais nada, é importante que os alunos, professores e todos que hoje fazem parte da Biko demonstrem eficácia e se empenhem na busca de doações e parcerias.


Leonardo Vieira: A Morehouse é voltada para a comunidade negra, a maioria dos estudantes é negra. Aqui temos vínculos com sociedades civis, na qual estudantes participam de eventos que beneficiam a comunidade negra local, através de serviços voluntários e de discussões com outros jovens da periferia, mostrando para esses jovens os benefícios do ensino superior. Acredito que a Morehouse é um exemplo a ser seguido para a criação de universidades voltadas para a população negra. Só através da educação, em especial do ensino superior, será possível criar espaços para a ascensão social dos negr@s.


Bikodisse: Que modelo de faculdade, tomando como base a Morehouse, seria interessante aplicar no projeto da faculdade da Biko?

Daniel Nascimento: A Morehouse dá oportunidade a jovens negros ingressarem na faculdade, sem distingui-los por seus grupos étnicos. A faculdade Steve Biko deve implementar um sistema educacional que inclua artes liberais, ou seja, conhecimentos gerais. Um sistema em que todos os estudantes possam cursar uma ou duas matérias de cursos diversos, além de disciplinas específicas de seu curso, interligando exatas com humanas, tornando o ensino mais dinâmico e interdisciplinar. O serviço voluntário também poderia ser utilizado como método de avaliação. Os estudantes desenvolveriam projetos sociais e fariam trabalhos em Ongs e escolas públicas durante o ano acadêmico.

Leonardo Vieira: Um modelo em que o aprendizado e a prática do ensino sejam equivalentes e tenham a sua importância reconhecida. Onde professores e alunos possam trocar experiências pessoais, para resolver problemas em comum. Um modelo em que o ensino da história da população negra seja utilizado como ferramenta de empoderamento pessoal. Esse pensamento é coletivo e trará benefícios para toda a população. A maioria dos eventos realizados pela Morehouse, como a cerimônia de boas vindas, é ligada à ancestralidade negra, e nesses eventos ocorrem rituais africanos.

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