Perseverança é uma das qualidades de nossa entrevistada para o sexto Bikodisse. Um dia, ela sonhou ser médica. Após participar de dois projetos da Biko (Pré-vestibular e Oguntec) e cursar sete semestres do curso de pedagogia, foi aprovada para o curso de medicina. Ariana Reis faz parte da família Bikud@. Sua história de vida e luta para concretizar um sonho, faz com que nos orgulhemos muito em dizer: “temos uma médica na família”...
Bikodisse: Como você conheceu o Instituto Steve Biko? Enfrentou alguma (s) dificuldade (s) para cursar o pré-vestibular? Qual (is)?
Ariana Reis: Após concluir o Ensino Médio em 1999 e com pretensão de entrar em um cursinho pré vestibular, um amigo indicou-me o Instituto em 2000. Foi o ano de reviravoltas e mudanças em meus pensamentos. Não tinha noção nenhuma a respeito do que é ser negro, de como podemos ter orgulho de sermos negros. Adquiri uma nova postura política sobre isso nas aulas de CCN e no convívio com professores e colegas que eram como eu. Essa mudança influenciou todos ao meu redor, principalmente minha família. As dificuldades que enfrentei como voltar tarde para casa, ir e voltar andando certos dias, passar o dia inteiro na biblioteca e ir direto para a Biko por não ter dinheiro para um lanche, enfim, essa fase passou, mas permaneceu a garra que nasceu com essas dificuldades.
Bikodisse: Você participou do Oguntec. Que importância teve esse outro projeto da Biko em sua preparação para ingresso na universidade?
Ariana Reis: Tenho um carinho especial por esse Projeto por ter me acolhido num momento muito difícil. Após ter estudado dois anos no pré-vestibular do Instituto e não ter passado no vestibular, o sentimento de incapacidade quase tomou contar de mim. Senti-me só, todos os meus amigos tinham conseguido aprovação no vestibular nesses dois anos e eu nada. Venho de família pobre, e meus pais não podiam custear meus estudos o tempo todo, me sentia na obrigação de dar um retorno a eles. Como não podia pagar um outro cursinho, Lázaro Raimundo, carinhosamente, convidou-me para fazer parte do grupo de alunos desse projeto que era destinado a estudantes do ensino médio e entraria como uma aluna “ouvinte”, para continuar me preparando para o vestibular. Lázaro foi a primeira e por muito tempo a única pessoal que acreditou em meu sonho, e, em uma das muitas conversas que tínhamos durante as aulas no Oguntec, ele me contou a história do bambu, que demorava cerca de cinco anos só para formar a raiz, e após esses cinco anos ele crescia muito porque era uma planta muito forte. Após a historia, ele me disse: “ É isso Ari que você está fazendo, fortalecendo sua base primeiro para depois crescer”. Aprendi muito com ele principalmente a ser persistente. Continuei estudando, porém de uma forma diferente, com animação e bastante relaxada. Neste ano de 2002, consegui passar em Pedagogia na Uneb e após algumas listas, também passei em Engenharia Química na UFBA.
Bikodisse: Qual importância do CCN (cidadania e Consciencia Negra) na sua formação política?
Ariana Reis: Toda minha forma de pensar hoje é influência do CCN. Inicialmente, resgatei a minha identidade, em seguida, lutei pelo reconhecimento da importância de meu povo em minha família e ao meu redor. E hoje, luto pelos meus direitos independente da minha cor. Tudo isso eu devo ao CCN.
Bikodisse: Medicina sempre foi sua primeira opção de curso? Por que resolveu cursar pedagogia na Uneb? Concluiu o curso?
Ariana Reis: Sempre quis a medicina, mas é difícil conseguir aprovação neste curso. Tentei por três anos passar no vestibular da UFBA, sem sucesso. Existem momentos na vida em que precisamos trilhar por outros caminhos para chegarmos onde queremos. E foi isso que eu fiz. Como na Uneb não tem medicina, resolvi inscrever-me no vestibular para Pedagogia e obtive aprovação em 2003. Cursei Pedagogia e inicialmente sem muitas expectativas. Com o passar do tempo, fui me encantando e quando percebi já tinha cursado o penúltimo semestre. Não conclui o curso, porque fui aprovada em medicina na FTC, pelo PROUNI e não podia ter duas matrículas abertas e, assim, precisei cancelar meu curso de Pedagogia para poder cursar Medicina. Foi uma escolha fácil e ao mesmo tempo difícil para mim. Na Uneb só faltava defender a monografia para concluir o curso e ainda fui aprovada em um concurso para professor na minha área. Precisava desistir de tudo isso. Mas, desistir porque a medicina sempre foi meu maior encanto.
Bikodisse: Atualmente você cursa Medicina na FTC. Já pensa em alguma especialidade na área médica?
Ariana Reis: Quero a área de Cirurgia Geral. Mas, penso também em Dermatologia, Cirurgia Pediátrica, Obstetrícia, Clínica Médica . O que gosto na verdade são dos procedimentos cirúrgicos.
Bikodisse: De que forma o curso de pedagogia contribui para essa outra graduação (medicina)?
Ariana Reis: Agradeço a experiência como universitária que tive na Uneb. Inicialmente, foi muito difícil estar entre os estudantes de medicina na FTC. Era tudo muito diferente de minha realidade social, cultural e econômica. Todos os meus colegas vinham de uma classe econômica elevada. Se eu não estivesse passado pela Uneb e pela Biko, acho que teria desistido, essas instituições me fortaleceram e adquiri certa habilidade em lidar com o diferente. Sem contar que tinha mais experiência em organizar os estudos, em apresentar e elaborar trabalhos, de certa forma, isso reflete em meu bom desempenho no curso de medicina.
Bikodisse: Que conselhos você dá para jovens negr@s que pretendem seguir essa área?
Ariana Reis: A maior lição que tive na vida foi não desistir dos meus sonhos. Desejo a todos os jovens negros muita força e coragem. Malcom X já dizia: “O futuro pertence àqueles que se preparam hoje para ele”. Na vida muitas vezes temos que passar por momentos difíceis, mas nada é para sempre e devemos lembrar sempre que somos hoje o que escolhemos no passado e se queremos um futuro melhor, temos que ir a luta agora. Uma certa vez, Sílvio Humberto nos disse: Já se imaginem lá, em seu primeiro dia de aula, conhecendo seus colegas, comemorando com sua família e amigos. Isso é um passo importante para conquistar o que se quer”. E para todos os negros que querem seguir a medicina, o que tenho a dizer é que venham sim, ser meus colegas, precisamos encher esses hospitais e clínicas de pretos, porém pretos médicos e não doentes. Precisamos apagar o olhar de surpresa dos pacientes ao ver um médico(a) negro(a) e fazer disso algo corriqueiro.
Bikodisse: Segundo dados do IBGE, cerca de 80% da população de Salvador é composta por negros. A que você atribui o fato de termos poucos médicos negros ? Qual sua opinião sobre as ações afirmativas (cotas) nas universidades?
Ariana Reis: Medicina é um curso que ainda tem prestígio social e um retorno financeiro bom, mas o investimento é alto e a concorrência para o ingresso nas faculdades e universidades é alta. Aqueles que querem ser médicos precisam de anos de preparo e educação de excelente qualidade para vencer essa concorrência. Essa educação de qualidade tem custo alto e os brancos é que se beneficiam dela, por isso a grande maioria dos médicos é de brancos que vêm de uma melhor posição socioeconômica. Nós negros dispomos de uma educação de qualidade inferior e muitas vezes não temos o apoio familiar. Os negros que estudam para ingressar no curso de medicina, não conseguem vencer a concorrência devido a defasagem educacional. Não podemos comparar o desigual. Aí é que entra a importância das cotas para estudantes afrodescendentes. Eu apoio sim as cotas através dela teremos uma concorrência mais justa e uma grande oportunidade de “enegrecer” as salas de aula de medicina e os corredores hospitalares de médicos negros.
Bikodisse: No início do século XX a medicina já foi utilizada como instrumento para justificar a inferioridade da “raça” negra. O que você pode nos falar sobre o racismo científico?
Ariana Reis: Não tenho uma formação em história, mas as informações que obtive a respeito da temática foi adquirida nas aulas de CCN da Biko, em conversas com amigos e em algumas disciplinas que cursei na UNEB. A história da humanidade sempre foi marcada por conflitos e lutas entre os povos. Um querendo mostrar a superioridade ao outro. E no final do século XIX para o início do século XX, os “brancos” tentaram provar sua “superioridade” através de algumas teorias que surgiram na Europa e que se espalhou pelo mundo e influenciou o pensamento cientifico. Aqui na Bahia, o famoso médico Nina Rodrigues em seus estudos tentou provar a “superioridade” do branco ao demonstrar o natural “instinto criminoso” do negro. Portanto, o racismo científico nada mais foi e é, do que uma forma de manutenção de poder por parte dos brancos. Entretanto, o que mais me magoa nisso tudo, é que essas teorias e pensamentos influencia nosso povo até hoje, quando vemos alguns de nós com baixa autoestima e insegurança quanto ao que se deseja para o futuro. Eu sou “apaixonada” pelo pensamento de Malcom X e lendo sua autobiografia, uma frase que fecha essa discussão é: "O homem branco quer que os homens pretos permaneçam imorais, depravados e ignorantes. Enquanto permanecermos nessas condições, continuaremos a suplicar, e o homem branco nos controlará. Jamais poderemos conquistar liberdade, justiça e igualdade enquanto não estivermos fazendo por nós mesmos.”
Bikodisse: Dr. Ariana terá uma atuação diferenciada em relação à adotada por outr@s médic@s? De que forma?
Ariana Reis: Não tem como não ter um olhar diferenciado. Venho de uma classe socioeconômica e racial diferente da maioria dos médicos que temos. É muito mais fácil para mim enxergar as dificuldades e problemas que passam os pacientes que freqüentam a saúde pública. Tenho o objetivo de dedicar-me à rede pública de saúde porque lá é que está o “meu povo”, precisando mais do que nunca de meus cuidados, um cuidado sem preconceito, um cuidado completo e com um olhar que vai além da quantidade de melanina da pele. Já estou em estágio extracurricular há um ano em um hospital público de Salvador, e meu preceptor também é um médico negro que é sensível as questões raciais. Lá, sempre que temos oportunidade, incentivamos os pacientes jovens negros a juntar-se a nós na medicina. Neste mesmo local, há alguns anos, precisei levar meu sobrinho para fazer uma sutura no couro cabeludo e eu em conversa bastante descontraída com o médico, informei-lhe que estudava muito, porque queria ser médica como ele e este em seu olhar me dizia: “ponha-se em seu lugar, você não vai conseguir”. Aí está um dos diferenciais em ter um médico negro cuidando de um paciente negro.
Muito bonita e inspirante esta trajetoria de Ariana Reis. Prossiga na Missao negona.
ResponderExcluirParabens para Ariana e parabens para a Biko!
Jamile Santos
ResponderExcluirSou amiga de Ariana ha anos acompanhei sua trajetória e posso dizer que sua luta nos inspira e nos da muito orgulho.Belissíma entrevista amiga,sou sua fã.Parabens a Biko pela iniciativa!
Ariana Reis
ResponderExcluirObrigada Michel e Jam pelos votos de coragem. Sempre precisamos saber que têm pessoas torcendo por nós e enviando pensamentos positivos mesmo à distância.
Aêêêê Ariiii!!!!!
ResponderExcluirSou seu fã também!!!
Beijos,
Vitor Tourinho
=)
Infelizmente só tive conhecimento desta matéria esse semestre. Mas gostaria de parabenizá-la pela trajetória e pelas vitórias alcançadas todos os dias. Fico feliz de tê-lá como amiga e colega de futura profissão.
ResponderExcluirAri pensar na sua luta e conquistas é algo digno de muito orgulho para mim, sua colega. Acho que histórias como a sua devem mesmo ser divulgadas para servirem de exemplo para outros jovens!!
ResponderExcluirPARABÉNS
Clarice Abreu(Clari)
Are, apesar de já conhecer sua historia (que eh um exemplo pra qualquer pessoa), me arrepiei com essa entrevista.. talvez por ver que vc tem muito mais força e garra do que demonstra no nosso cotidiano, com seu jeito sereno e amigável. Tenho muito orgulho do que vc representa pra comunidade e pra sua família e tenho certeza que vc será uma grande profissional e nunca deixará de olhar pelos que mais precisam.
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