BIKO DISSE: "Precisamos aprender a aceitar que nenhum grupo, por melhores intenções que tenha, poderá um dia entregar o poder aos vencidos, numa bandeja."
Bikodisse: Quem escolheu seu nome? Que significado tem?
Nairobi Aguiar: O meu nome foi escolhido por minha tia Ana Meire Aguiar, uma das fundadoras do bloco afro Ilê Aiyê e a primeira a inaugurar um salão de beleza afro. Meu nome foi dado na intenção de preservar e resgatar a nossa identidade africana. Toda a minha geração de linhagem paterna tem nomes africanos. Nairóbi foi um nome dado a um lago onde as pessoas se banhavam em busca da cura, com o tempo esse lago foi crescendo e se tornou um rio cujas margens foram povoadas até a constituição da cidade que hoje é a capital do Quênia, País africano.
Bikodisse: Como conheceu a Biko? Enfrentou dificuldades para cursar as aulas do pré-vestibular Steve Biko?
Nairobi Aguiar: Quando comecei a fazer Biko ainda estava no último ano do ensino médio e queria fazer vestibular. Um amigo meu chamado Araiyê me falou sobre um pré-vestibular para negros.Eu achei ótimo e disse: é isso mesmo que quero.Me escrevi e lembro que fiquei super nervosa na hora da entrevista e no momento que recebi a notícia que havia sido selecionada. Eu, minha família e minhas amigas (os) festejamos como se eu estivesse passado no vestibular ... Mas, foi bem isso que aconteceu, a Biko para mim é uma grande universidade, e eu me formei em bikuda!!! Tive muita dificuldade em minha casa, quando comecei a questionar tudo que entendia como racismo. No começo, até as pessoas de minha família me rotularam de “racista às avessas”, mas depois consegui fazer com que me entendessem. Depois enfrentei uma das dificuldades mais comuns para juventude negra; a pobreza. Não tive condições de pagar as minhas mensalidades, contudo, nem por isso fui excluída da família Biko, muito pelo contrário, fui abrigada. Muitas vezes tive dificuldade no deslocamento e precisei ir andando do IAPI até a Rua Chile, onde era localizado o prédio de aulas da Biko, em 2003. Lembro como se fosse hoje... já precisei até usar carteira de passe de deficiente, para entrar pela frente do ônibus... As aulas terminavam às 22h, era complicado voltar esse horário para casa andando, sendo eu mulher. Ainda assim, com toda dificuldade, consegui ir até o fim do curso.
Bikodisse: Qual importância do CCN da Biko para sua formação política?
Nairobi Aguiar: O CCN pra mim foi como um choque de alerta na minha condição de mulher negra e moradora de periferia. Foi nas aulas de CCN que muitas vezes ouvi Marina Bonfim e Marcus Alessandro dizerem que a universidade era o nosso lugar e que nós tínhamos a missão de ocupá-la...que deveríamos entrar pela porta da frente...sair da cozinha e ocupar todo esse espaço de poder. E foi bem isso que eu fiz.
Bikodisse: Quando e por que resolveu torna-se uma historiadora? Concluiu curso?
Nairobi Aguiar:Parafraseando Marcus Mosiah Garvey: “um homem sem o conhecimento da sua História é como uma árvore sem raiz”... De fato fui muito influenciada pelas aulas do professor Marcus Alessandro, e nessas aulas descobri que tudo que decorei em toda a minha formação educacional referente a história, era parte de uma grande mentira. Descobri que nós negras éramos descendentes de reis e rainhas, e que nossas heroínas e heróis foram invisibilizados pela historiografia “oficial”. Então pensei: meu papel como futura historiadora e professora de história é ajudar a desconstruir essa história, contar a nossa verdadeira História e contribuir para formação de pessoas comprometidas e questionadoras da realidade... Irmãs e irmãos capazes de se entender como sujeitos históricos e transformadores da realidade.
Bikodisse: Durante a graduação, você participou de uma mobilização, em prol da renegociação das mensalidades de um grupo de estudantes? Como foi essa atividade?
Nairobi Aguiar:Lembro que ainda caloura fui convidada para construir uma chapa que disputaria o Centro Acadêmico de História da UCSAL, e eu como uma boa bikuda me lembrei das aulas de CCN e disse: esse é o momento de ocupar a Universidade como um todo. E isso aconteceu... fui coordenadora financeira do Centro acadêmico Carlos Marighela, isto foi de fundamental importância no processo de matrícula de 2006.1 e 2006.2, em qual conseguimos garantir a permanência de centenas de estudantes negros e negras, inclusive alguns que estavam prestes a se formar. Incluímos no calendário da Universidade a 1° semana do novembro negro, além das atividades integradas com o Núcleo de estudantes negras e negros da UCSAL “Makota Valdina” que tanto contribuiu para minha postura política e acadêmica. Através desta movimentação de estudantes negras na Católica, chegamos a fazer vários movimentos e documentos de repúdio a postura da Reitoria, além de construir um projeto de permanência de estudantes negras que abrangia desde a comunidade das cercanias do Engenho Velho da Federação até funcionários e estudantes da academia...
Bikodisse: Qual é a sua avaliação sobre a campanha Reaja? E de que forma você tem contribuído com as ações dessa?
Nairobi Aguiar:A “Reaja!” é uma campanha pela vida e contra o Genocídio da comunidade negra. A partir desta articulação de comunidades e organizações negras aprendemos desde 2005 que era possível (e necessário!) articular esforços da comunidade negra frente ao cotidiano processo de criminalização, engendrado pela interseção do racismo, sexismo e homofobia. A campanha teve uma importância particular para minha formação política, pois através desta conheci pessoas como Lio Nzumbi, Hamilton Borges, Vilma Reis, Andreia Beatriz... E ingressei numa escola política que quebrava o silêncio frente às variadas formas que assume o nosso Genocídio. Esta escola nos lembrava o tempo todo que estávamos “por nossa própria conta”, independente de partidos políticos, ONGs e as ditas organizações de “Direitos Humanos”. Já contribuí para construção de inúmeras atividades da campanha, mas agora creio que vivemos uma conjuntura complicada...o contra-discurso defendido pela campanha tem sido criminalizado... a matança de jovens negros continua sendo justificada como ações de combate ao tráfico, a juventude negra continua superlotando as instituições prisionais e sinto que a nossa voz no momento parece estar afônica e precisamos recuperá-la para continuarmos essa luta e garantir a vida da nossa juventude.
Bikodisse: Como se deu sua participação do I ENJUNE ?
Nairobi Aguiar:Por entender a importância de reunir a juventude negra nacionalmente e poder pensar, propor e encaminhar políticas públicas para essa, participei no primeiro momento (pré-ENJUNE) do Grupo de Trabalho de educação em Vitória da Conquista. No ENJUNE propriamente dito, fui escolhida para ser relatora do Grupo de Gênero e feminismo negro.
Bikodisse: Atualmente você é assessora parlamentar do vereador Moisés Rocha (Salvador-Bahia). O que pode nos contar dessa experiência?
Nairobi Aguiar:Acho importante ocuparmos e conhecer estrutura de poder. Entendo o poder legislativo como um meio de construirmos uma outra forma de fazer política, onde verdadeiramente possamos literalmente construir projetos que se adéquem as necessidades do povo negro, para então podermos utilizar a estrutura ao nosso favor. Podemos dizer que indubitavelmente conseguimos construir um mandato verdadeiramente participativo e popular. Toda a nossa atuação é construída junto aos segmentos que representamos no poder legislativo municipal. De fato, nos consagramos como mais um dos poucos espaços em qual a comunidade negra pode ter a sua voz ecoada e as suas demandas atendidas a partir de um espaço que nós mesmos construímos. Entre as investidas que apontamos como releventes estão Projetos de lei importantes como o que determina a criação de um centro de redução de danos e de tratamento clinico-ambulatórial e psicológico para dependentes químicos nos postos municipais de saúde, criação de serviço SIMM e de um posto de recarga do SETEPS na Liberdade, disposição de método contraceptivo DiU e a contracepção de emergência sejam incluídos no plano de planejamento familiar, com irrestrição ao acesso nos postos municipais de saúde, a reserva no cemitério municipal de Salvador para sepultamento de pessoas segundo a liturgia islãmica nos cemitérios municipais, meia passagem para estudantes de Quilombos educacionais, a isenção do IPTU e da TRSD a População acima de 65 anos com declaração de pobreza reconhecida e portador de moléstia grave, monitoriamento das atividades da Guarda municipal através de micro câmeras instaladas em suas unidades móveis dentre outros. Mas para além deatuações pontuais estamos sempre nos prontificando a atender demandas que estejam em torno de nossa perspectiva política ideológica.
Bikodisse: Você considera importante votar em candidatos negr@s e comprometidos com as questões raciais?
Nairobi Aguiar:Acho que devemos não só votar, mas apoiar, multiplicar o voto entre nossa família, amigos, e outras pessoas que possamos influenciar na eleição de candidatos negros comprometidos, que tenham o seu projeto político verdadeiramente voltado aos interesses de nossa comunidade. Precisamos refletir sobre a importância do nosso voto. Qual o número de votos do colégio eleitoral hoje na Bahia? Questões como esta nos impõe a necessidade de transformar esta realidade, garantindo eleição de homens e mulheres comprometidas com a nossa história, que tenham como bandeira o combate a toda forma de discriminação, na busca da reparação do nosso povo. Por isso declaro o meu apoio ao Deputado Federal Luiz Alberto.
Bikodisse: Você tem um filho de 02 anos. Qual nome dele e qual importância de colocar nomes de origem africana? O que a mamãe Nairobi deixa como mensagem para as gerações futuras?
Nairobi Aguiar:Meu filho se chama Oniodê Nzumbi. Eu e seu pai Lio Nzumbi escolhemos esse nome porque sabemos que o nome de uma pessoa é fundamental na construção de uma identidade. Ainda assim seguindo a linha de pensamento que a minha tia teve, no resgate da nossa identidade africana. Como era de se esperar, tivemos problema para registrá-lo, porque a escrivã queria que pedíssemos autorização ao Juiz para colocar o nome de nosso filho (imagine!)... Estávamos dispostos à ir até o Ministério público, mas enfim... com a orientação da Defensoria Publica, na pessoa da Dra. Aynhamona de Brito registramos a existência de nosso filho diante dessa sociedade racista. O substantivo “Oniodê” é de origem Yorubá (Ketu), significa o “Senhor da caça, da fartura e das possibilidades”. O complemento “Nzumbi” é em Kibundo uma inferência a continuidade de uma linhagem... está relacionado a idéia de imortalidade prometida aos guerreiros durante o processo de iniciação no campo de batalha. No mundo de hoje o que nós percebemos é um distanciamento muito grande das nossas crianças com o vinculo familiar, devido a games, net, etc. então dedicamos os nossos esforços à preservação de nossas tradições, ao respeito aos mais velhos enfim... ao olhar pra frente sem deixar de resgatar o que nos foi roubado. É isso que nos ensina o ideograma Sankofa. Não tenho lição a dar. Não tenho muito apego a mensagens em tom professoral. Mas posso escutar à noite, quando o vento sopra, o apelo de nossos ancestrais clamando por justiça... Em meus sonhos eles me dizem: Lutem!