Bikodisse: Conte-nos um pouco sobre sua trajetória educacional antes do ingresso no pré-vestibular Steve Biko.
Carina Reis: Estudei desde o primário até a quarta série em uma escola chamada Divino mestre, uma escola da ordem cruz de Malta que beneficiava famílias carentes da comunidade em que eu morava (Barbalho). Foi lá que o racismo me machucou pela primeira vez quando, ao falar que queria ser bailarina, uma professora me olhou e me perguntou “você já viu bailarina preta menina? onde já se viu isso”. Esta mesma professora penteava os cabelos das meninas brancas e o meu e de outras meninas negras ela nunca tocou.
Da quinta série ao segundo ano do ensino médio eu estudei no Colégio Estadual Carneiro Ribeiro Filho, porém por determinação do governo, as escolas a partir de então só teriam formação geral, sendo assim fui transferida para o Colégio Estadual Mário Augusto Teixeira de Freitas, que era um dos únicos colégios que ainda teria formação técnica e foi onde concluí meu curso de técnica em contabilidade.
Lembro-me que quando voltei ao Carneiro Ribeiro para pegar meu histórico para me matricular na universidade, a diretora que era a mesma do tempo em que eu estudava, ao me ver perguntou-me quantos filhos eu tinha e se eu estava voltando para a escola. Essa mesma diretora e a maioria dos professores daquela escola nunca incentivaram e nem acreditaram que os alunos de lá pudessem ingressar em uma universidade e quando eu disse o porquê de estar ali, ela se mostrou bastante surpresa e relutou muito a me parabenizar.
Bikodisse: Antes de ingressar no Instituto Steve Biko você já havia participado de outro grupo ou ONG? Quais? De que forma?
Carina Reis: Sim, do grupo de jovens na igreja do Santo Antônio Alem do Carmo.
Lá nós trabalhávamos com o intuito de ajudar de diversas formas pessoas necessitadas de carinho e atenção como, por exemplo: orfanatos e abrigos para idosos.
Bikodisse: Quando e como começou sua história na Biko? Enfrentou alguma dificuldade para cursar as aulas do pré-vestibular? Qual (is)?
Carina Reis: Comecei minha história na Biko um ano antes de
entrar na instituição, em 2000. Vi em uma entrevista sobre o Pré- vestibular e me lembro até hoje, o entrevistado era o Ex-professor Geraldo Belmonte, mas só vi a reportagem no final e não sabia a data de encerramento das inscrições. Por conta disso, só após uma semana procurei a instituição para fazer a minha inscrição, -foi o tempo que levei para conseguir a grana da inscrição - mas chegando lá, infelizmente, o prazo já havia acabado. A partir daí começou a minha peregrinação, fiquei o ano todo ligando para a Biko, querendo saber quando teria nova inscrição, e com medo de perder novamente. No ano de 2001 enfim consegui me inscrever, passei por todo o processo e comecei a fazer o curso pré vestibular, daí em diante participei do curso de DH e antirracismo, do POMPA, fui assistente pedagógica na gestão de Josilene Sales e em 2005 fui professora de CCN, o que me deixou extremamente orgulhosa por ter sido capaz de assumir tamanha responsabilidade, visto que trata-se do diferencial da Biko.
As dificuldades que enfrentei foram muitas, eu não trabalhava na época, não tinha “grana” para nada, ia do Barbalho até à Praça da Sé todos os dias andando e voltava andando. Muitas vezes passava a tarde toda na biblioteca com fome. Lembro que sempre surgia alguém do grupo com um biscoito seco, um nego bom que nos salvava, além disso eu tinha um filho de um ano e quatro meses, que muitas vezes ia comigo para a instituição e eu precisava me virar com "bicos" para alimentá-lo. Foi uma época muito louca da minha vida, mas encontrava na Biko e nos colegas que estavam na mesma situação que eu, às vezes melhores ou piores, a sustentação para continuar seguindo e acreditando que a história da minha família podia ser reescrita através de mim.
Depois de muitas batalhas entrei na Universidade Católica no curso de letras vernáculas e fiquei lá por quatro semestres até que mais uma vez tive de abrir mão do meu sonho, por falta de dinheiro tive de abandonar o curso.
Bikodisse: Como foi seu relacionamento com a Biko durante esse tempo? O que faz atualmente no ICSB?
Carina Reis: Fiquei cinco anos em atividades na Biko,
porém em 2005.2 tive de me afastar porque arranjei, depois de muita luta, um trabalho com carteira registrada, e como há muito eu não tinha trabalho fixo, precisava aceitar a proposta. Por conta disso e de algumas situações ligadas a minha vida pessoal, acabei me afastando fisicamente um pouco da instituição, mas a minha e cabeça e meus pensamentos estavam sempre voltados para tudo que acontecia por lá.
Em 2009 fui convidada por Silvio Humberto a participar de um processo seletivo para ser educadora do Projeto Conexão Direta com o Futuro, uma parceria da Biko com o Instituto Nextel.
Tive meu currículo aprovado e isso culminou na minha volta para a Biko. Hoje faço parte do Nudep e também sou investidora social.
Bikodisse: Em outras edições da Bikodisse, @s entrevistad@s relataram a importância da disciplina CCN (Cidadania e Consciência Negra) em suas vidas. Com eram as aulas de CCN na época em que você estudou no Pré-vestibular Steve Biko? Que importância essas aulas tiveram na elevação de sua autoestima e formação política?
Carina Reis: Relatei anteriormente sobre minhas dificuldades para fazer o
curso e quando digo que na Biko encontrei esteio, me refiro principalmente ao CCN. Quando estudei, os professores de CCN eram Lázaro Passos e Carmen Flores, quem os conhece pode avaliar quão ricas e motivadoras foram essas aulas, principalmente politicamente. Eu conhecia pouco de mim, da minha história, e minha autoestima fora arrancada de mim desde muito pequena. Na Biko passei a gostar mais de mim, do meu cabelo e do que cada traço representava, passei também a entender tudo que o racismo fez e faz comigo e com meu povo, da religião do meus ancestrais e de como esta foi deturpada e endemonizada, da representação que me faziam crer por muito tempo de qual era o papel de uma criança, uma jovem e uma senhora negra, e que estas jamais teriam seus espaços garantidos.
O CCN me fez renascer, acreditar em mim, no meu potencial, na minha beleza negra, na minha inteligência, na minha força, me fez acreditar na força e apoio espiritual que tenho, vinda dos Orixás e dos meus ancestrais e com certeza muito do que sou hoje foi graças a tudo que tive na Biko e no CCN.
Bikodisse: Quais os principais motivos para a escolha do seu curso de graduação? O que motivou o seu interesse em ingressar na Universidade?
Carina Reis: Na minha família nenhuma mulher tinha curso superior e meu irmão Miguel Ângelo Reis foi o primeiro da família a ingressar em uma universidade. Sempre o tive como referência de inteligência e sabedoria, gostava de como ele falava e interagia com as palavras e isso me fez inicialmente escolher o curso de letras, que era o curso que ele tinha feito. Cheguei a cursar Letras por quatro semestres, mas, por falta de grana acabei saindo. Há dois anos voltei para a graduação e depois de muito avaliar o que eu realmente queria fazer, optei por fazer uma graduação no curso de Gestão de Pessoas, que está ligado diretamente ao que faço hoje e ao que quero fazer futuramente.
Bikodisse: O Instituto Steve Biko tem a visão de constituir-se numa Instituição de Ensino Superior (IES) em 2012. Como você se vê nesse processo?
Carina Reis: Integrada e atuante, desde o levantar do primeiro bloco até a primeira turma formada e daí em diante. Esta Instituição que é um sonhos meu, e tenho certeza que de muitos que passaram pela Biko, é a certeza do começo de uma nova era.
Bikodisse: Você participou da mobilização em prol da isenção da taxa de inscrição no vestibular da Ufba no mês de agosto de 2001. Como se deu essa mobilização?
Carina Reis: Essa mobilização se deu motivada pela ira de sermos reprovados antes mesmo de fazer a prova, o valor da taxa era muito alto como é até hoje, e não achávamos justo que ficássemos de fora por não ter este dinheiro para pagar, lembro-me que Sueli, George e outros, encabeçaram inicialmente esse movimento em um discurso consciente e convicto do que nos estava sendo negado, e nós, movidos pelos mesmos ideais, imediatamente concordamos em entrar nessa briga pela insenção. A Biko nos ensinou a lutar e assim o fizemos, começamos com poucas pessoas, cartazes em cartolina e gritos que ecoavam as ruas do centro, conseguimos mobilizar em pouco tempo pessoas de outras instituições e fizemos muito barulho, gritamos por reparação. Essa foi para mim uma das experiências mais ricas da minha vida e ter conseguido junto com todos que lá estiveram de fato, desde o início, foi muito marcante. Faria tudo outra vez.
Bikodisse: Quando e como teve início a sua participação no Projeto Conexão Direta com o Futuro (parceria entre os Instituto Steve Biko e Nextel)? O que faz neste projeto atualmente?
Carina Reis: Minha participação teve início através de um processo seletivo como já citei acima. Trabalhei muitos anos como operadora de telemarketing, e o projeto precisava de uma educadora de teleatendimento, isso se deu em março de 2009.
Hoje estou efetivada no Instituto Nextel como educadora de técnicas de atendimento e cultura, e venho aprendendo muito com as formações e as experiências de mulheres maravilhosas como Jucy Silva e Maria Luisa, detentoras de muito conhecimento e sabedoria, além do senso de coletividade que é agregado a mim e aos demais colegas sempre.
Contando também com essa nova experiência que é a de trabalhar com o social aliado a parte empresarial que traz uma outra forma de trabalhar, bastante rica.
Bikodisse: O Estado do Rio de Janeiro pretende adotar reserva de vagas para negros em concursos públicos. Qual sua opinião sobre essa medida?
Carina Reis: Precisamos de reparação em todas as instâncias, precisamos ter de volta tudo que por muito tempo fomos privados, entender que não queremos cotas para a eternidade, e sim, queremos isso por tempo suficiente para que possamos ser reparados por tudo que nos foi negado durante todos esses anos.
Essas ações não deslegitimam nem anulam, de forma alguma, a nossa capacidade intelectual.
Bikodisse: Quando e por que você resolveu se tornar uma Investidora Social ? Essa doação tem alguma relação com as aulas de CCN?
Carina Reis: Desde que estudei na Biko sempre tive essa vontade de estar e ajudar como pudesse. Me tornei investidora social em 2009, e sim, tem muito haver com o CCN. Com o CCN aprendemos que o trabalho deve ser continuado e quem melhor que nós, que fomos beneficiados e que conhecemos a seriedade desse projeto, para colaborar? Sou feliz hoje por poder contribuir com o que entendo ser o mínimo para a Biko.