sexta-feira, 30 de abril de 2010

Steve Biko (Parte 1)



Grandes mudanças estão para acontecer na África do Sul. A primeira Constituição pós-apartheid está em fase de elaboração e as primeiras eleições multirraciais da história daquele país estão marcadas para 27 de abril do ano que vem. Isso significa que o surgimento de um governo de maioria negra, que colocaria um fim em 350 anos de dominação branca, deixou de ser apenas uma possibilidade teórica. E claro que nem tudo são flores. A violência racista continua existindo, uma vez que o aparelho de Estado montado pelos racistas ainda sobrevive. Além disso, um setor mais radical da população branca parece ter optado pela resistência armada às mudanças. E grande parte das cenas de violência que se tomaram habituais na África do Sul têm como protagonistas os próprios negros. Os choques entre militantes do Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, e do Partido da Liberdade Inhkata, do chefe zulu Mangosutu Gatsha Buthelezi, provocaram e continuam provocando muitas mortes.

Apesar de toda violência, o recuo do regime racista, iniciado no final da década de 80, já é irreversível e o surgimento de um regime democrático no sul do continente africano é agora uma possibilidade real. A importância de uma África do Sul democratizada não se restringe ao fim da opressão sobre os negros do país. Sua riqueza e seu avanço tecnológico são vistos por muita gente corno um importante potencial regional que pode facilitar a quebra do isolamento econômico a que o continente africano está submetido, contribuindo para a melhoria das condições de vida de milhões de africanos.

Entre os milhares de negros sul africanos que deram a vida pela libertação do seu povo da opressão racista, existem muitos nomes que se destacam. Mas um deles terá para sempre um lugar especial na memória do povo negro da África do Sul e dos democratas do mundo inteiro. Seu nome era Steve Biko, principal dirigente da organização Consciência Negra e ex -presidente da Organização dos Estudantes da Africa do Sul (OESA), entidade que representa os estudantes negros daquele país.

Steve Biko nasceu a 18 de dezembro de 1946 em King Willian 's Townn,cidade da Província do Cabo, no extremo sul da África do Sul, e morreu no dia 12 de setembro de 1977, após ser preso e torturado pela polícia política sul-africana. Seu pai, Mzimhkayi Biko, morreu quando ele tinha apenas 4 anos de idade. Ele tinha um irmão e uma irmã mais velhos e uma irmã mais nova. "O lar dos Biko - conta Barney Pityana, seu amigo de infância e companheiro de militância- era realmente uma grande família. Todos aprenderam a partilhar e contribuíram para a vida familiar de acordo com suas capacidades.Esse espírito de colaboração deixou uma impressão duradoura em Steve Biko. Ele foi criado somente com o irmão e as irmãs pois a mãe, embora tivesse um emprego em tempo integral, também criou filhos de alguns parentes. Steve se impressionava com a atitude filosófica de sua mãe em relação à luta diária pela sobrevivência e seu compromisso total de oferecer toda a ajuda que pudesse, não só para os filhos, mas para todos que a solicitassem na hora da necessidade. Isso era natural. Mas foi a semente da qual nasceu um sistema político que iria transformar toda a cena sul-africana ".

Desde cedo, Biko demonstrou ter uma mente aguçada que se combinava com personalidade carismáticas. Era um homem alto e bonito. Tinha mais de 1,80 metros de altura e a corpulência de um lutador de boxe peso pesado. Donald Woods, seu biógrafo e amigo, diz que, como muitos grandes homens, ele não tinha nenhum indício de arrogância e jamais demonstrou o menor traço de ódio, mesmo em relação a seus perseguidores. Era também um trabalhador ativo e entusiasmado, acostumado a varar noites escrevendo panfletos. Leitor voraz, mantinha-se sempre bem informado sobre teorias e acontecimentos do país e do exterior. Gostava de jogar futebol, de dançar e era também dotado de grande capacidade de amar, característica que criava problemas, principalmente para sua esposa, Ntsiki, com quem teve dois filhos.

Biko começou os estudos na Brownlee Primary, onde ficou dois anos, passando em seguida para a Charles Morgan High Primary, onde permaneceu 4 anos. Depois foi para Lovedale, uma escola para meninos na parte oriental da Província do Cabo. Mas a passagem por ali foi curta. E, 1963, após uma permanência de apenas 3 meses, Biko e muitos outros estudantes seriam expulsos, depois de uma greve deflagrada pelos alunos mais velbos.

Em 1966, depois de concluir com sucesso os estudos em uma escola católica, Biko matriculou-se na Universidade de Natal para estudar medicina, curso que seria obrigado a abandonar para se dedicar à atividade política. Já em 1967, ao participar do congresso de uma organização estudantil liderada por brancos, na Universidade de Rhodes, Biko chamava a atenção dos meios de comunicação, conquistando a liderança sobre os delegados negros. Em outra conferência de uma organização multirracial, realizada em 1968, em Stutterhein, suas idéias receberam um apoio entusiasmado da delegação negra. Segundo Pityana, esse encontro estaria na origem do nascimento da Organização os Estudantes da África do Sul, que perturbou profundamente o alinhamento tradicional do mundo estudantil sul-africano, que consistia, por um lado, no Afrikaanse Studenbond, representando as universidades de língua africâner que apoiavam o apartheid, e por outro lado a UNESA, que representava os estudantes de língua inglesa, incluindo as faculdades negras.

Depois que deixou a presidência da OESA, (seu sucessor no cargo foi Barney Pityana), Biko voltou suas energias para a implantação dos Programas da Comunidade Negra (BCP). Esses programas eram centralizados na igreja da Leopold Street em King Willian's Town e incluíam vários projetos de auto ajuda negra, como cursos de alfabetização, corte e costura e educação sanitária. Um dos principais projetos na área de saúde era a clínica Zanampilo, em King Willian 's Town,onde milhares de negros da zona rural eram atendidos.

O governo racista, evidentemente, via perigo nas atividades de Biko e o perseguia.No ano de 1973, ele estava entre dezesseis ativistas, brancos e negros, que foram banidos pelo governo. No total, foi proscrito e detido quatro vezes. Essa pena de proscrição, que era imposta pelo governo racista aos ativistas anti-apartbeid, consistia no confinamento em determinada área ou cidade e, conseqüentemente, na proibição de se movimentar pelo país.Ela incluía também a proibição de estar com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, de publicar textos e outras.

Por força disso, ele foi obrigado a abandonar Durban, onde vivia, e transferir-se para King Willian 's Town. A cidade tornou-se então um ponto de referência para onde se dirigia um interminável fluxo de visitantes para ouví-lo.

A morte de Biko foi também uma conseqüência indireta dessa pena de banimento, uma vez que, apesar da proibição, Biko continuou se movimentando pela Africa do Sul, exercendo o seu papel de dirigente e organizador do Movimento Consciência Negra. E foi no dia 18 de agosto de 1977, durante uma dessas viagens, que Steve Biko e seu amigo Peter Iones foram detidos em um bloqueio rodoviário da polícia de segurança, perto de Grahamstown, na Provínciado Cabo Oriental. Dalí eles foram levados para Port Elizabeth, cuja polícia tinha fama de agir com dirigente político negro da África do Sul a questionar publicamente o papel dos liberais brancos na luta contra o regime racista dos africãner, apontando a necessidade dos negros construírem suas próprias organizações. Ele acreditava na viabilidade de uma estratégia de libertação sem violência, propondo-se a atuar dentro dos limites da legislação vigente no país. Vejam como o próprio Biko fala de sua concepção de luta: "Na verdade, como enfatizamos, nós do Consciência Negra éramos considerados como defensores do sistema. Os liberais nos criticavam e os conservadores nos apoiavam. Mas isso durou pouco. O governo levou 4 anos para tomar extrema violência. No dia 6 de setembro, ele foi submetido a 22 horas de interrogatório, durante as quais foi torturado e espancado, vindo a falecer no dia
12. A partir daí, a estrutura organizativa do Consciência Negra seria esmagada e seus líderes perseguidos.

Fonte: Revista Pode Crê, Ano I- Ago/Set - 1993, nº 2